segunda-feira, janeiro 29, 2007

Hei D. Maria!

Eu gritava batendo palmas no portão. Logo vinham os dois cachorros amarelos latindo insistentemente até que vinda lá de cima, descendo a rampa que levava a porta lateral da casa, vinha me atender aquela senhora idosa de aparência cansada.
- Hei Dona Maria! Olhe eu aqui incomodando de novo.
- Não, não. Você nunca incomoda querida. Como está a mana? E o pai? E a Mãe? Ela está bem de saúde? Ainda morando em Mafra?
- Ta sim D. Maria, ta bem, ta em Mafra sim. O Pai e a Zete também, tão na loja agora.
-Ah, que bom! Que bom que tem trabalho, né? Deus é muito bom. Ontem levei o Tonho ao Santuário. Você já viu o coração?
- Coração D. Maria, que coração?
- O coração de Jesus que tem no santuário. Nunca vi coisa mais linda na minha vida, é muito lindo, muito lindo.
- Que legal D. Maria!
- Quer entrar minha linda? Como você está bonita.
- Não, não D. Maria, na verdade eu vim pedir uma xicrinha de trigo emprestada. A Zete vai no mercado hoje e disse que amanhã a gente devolve.
- Não, não precisa.
D. Maria sai, volta três minutos depois com a xicrinha de trigo, um pratinho com um pedaço de bolo recém tirado do forno e um cacho de bananas.
- Não precisa tudo isso D. Maria.
- Leva, leva. E não quero o trigo de volta. Leva o bolo pras crianças, mais tarde o Genésio leva umas balinhas pra elas. Dá um beijo na Zete e na mãe também. Deus vai ajudar a mãe, ela vai ficar boa minha filha.
- Obrigada D. Maria, não precisava de tudo isso mesmo, amanhã devolvemos sim, peço às crianças pra trazerem. Obrigada D. Maria!
- Vai minha filha. Vai com Deus! Eu tenho uma casa toda pra limpar hoje ainda.
- Não devia D. Maria, devia descansar que a senhora não anda bem. O médico não mandou descansar?
- Mandou sim, mas não tem ninguém pra fazer o serviço por mim, e alguém tem que olhar o Tonho e fazer o almoço pro Genésio.
- Vê lá D. Maria, vê se se cuida. Tchau!
- Tchau, minha filha. Vai com Deus!

Esta cena se repetiu, sem significativas mudanças no cenário e no diálogo, muitas vezes. Tenho-a bem gravada na memória.
A senhora de nome Maria era tão simples quanto o seu nome. Vivi na casa que fazia vizinhança à frente da sua, no bairro Floresta, por cinco anos. Durante o tempo em que morei lá pude saber de poucas coisas da vida desta mulher, mas o que eu soube e o que eu vi sobre quem ela era para mim bastam.
D. Maria se casou cedo, se amava seu marido isto é coisa que não sei, mas que era dedicada, isto era. Há alguns anos, creio eu que muitos anos, perdeu dois filhos jovens afogados numa praia, tinha um filho doente mental, que costumava varrer a rampa na frente da casa e botar o lixo para fora. Ele ficava sentado por horas no jardim e me dava “tchau” quando eu saía e quando eu voltava. D. Maria tinha outro filho que vivia com ela, eu tinha uns treze anos e achava que se existia uma cara que era “mau”, este cara era ele. Ele a maltratava, sabem? Ele a maltratava mesmo...
O S. Genésio, seu marido, era um velho bêbado. Sempre bêbado, sempre tremendo, sempre caindo no terreno baldio ao lado da minha casa, sempre gritando com ela. Ás vezes voltava do bar e levava umas balas para os meus irmãos, estas coisas que os bêbados fazem, outras vezes ele brigava com ela, não sei se batia, mas devia bater, porque o Tonho avançava nele, o Tonho tinha idade mental de quatro anos acho, talvez três, talvez seis, um dia alguém me disse, mas eu não me lembro ao certo. O Tonho era o filho da D. Maria que teve meningite, o Tonho tinha trinta e três anos.
A D. Maria era uma pessoa muito, muito, muito amável. Todos nós a amávamos, pena que todos nós tivéssemos sempre tantos problemas. Podíamos ter feito muito mais por aquela alma cansada. Podíamos ter feito mais por aquela senhora encantadora que da última vez que vi estava doente, com um tipo de paralisia facial psicológica. Isto foi há dois anos, foi quando arrumei minhas coisas e saí daquela casa, saí sem dor na consciência, fugi dos meus problemas (que eram tão pequenos perante os dela), e o que mais me dói é que nem senti a sensação de estar esquecendo algo, eu nem me despedi da D. Maria.
Ontem descobri que a D. Maria está morta há duas semanas, ninguém se deu ao luxo de me avisar, ninguém pensou que eu me lembrasse dela.
Eu não acredito muito em céu, não anseio o céu para mim, mas ela o ansiava, era o seu único conforto. E neste momento eu queria muito mesmo que o céu existisse, só para a D. Maria, só para que uma vez na vida ela fosse recompensada. Eu queria que de alguma forma ela pudesse saber o que eu penso, para que ao menos uma vez ouvisse da boca de alguém o quanto era especial. D. Maria.

3 comentários:

Anônimo disse...

O céu existe sim! ;]

Ana disse...

O mais importante, é o que você sente. Fique feliz em sentir-se assim.
Se o céu exite ou não, é outra questão. Porém, se você quer que ele exista para ela: sim, ele existirá.

Belíssimo texto Fran =*

Anônimo disse...

ei, ou eu estou enganado ou essa dona maria é conhecida da minh mãe. ela, por acaso, ajudava em uma cozinha comunitária ali no floresta mesmo??? a minha mãe trabalhou ali um tempo e ela conheceu uma senhora com o mesmo nome, mesma história... só não sei se com o mesmo fim... também não sei o que esperar: considerando tudo o que viveu, não sei se é melhor que essa dona maria tenha realmente falecido ou não...
esse teu texto mostra uma verdade: a de que deixamos pra trás pessoas das quais só sentiremos falta quando tivermos certeza de que não as veremos novamente... é assim todo dia e acontece com todo mundo... pro melhor e pro pior...