quinta-feira, março 26, 2009

Poeminha que te conte

Ontem procurei um poeminha
procurava umas tantas palavras que te contassem
que tu ainda não és o que há de mais valioso em minha vida
porque o meu maior tesouro é só meu
e eu nunca deixei ninguém roubar.
Queria que aquelas palavras te contassem
que deixei a porta aberta
pra você entrar.
Não conte pra mim que eu te contei,
mas chegue devagarzinho
e pode me levar.
"É que eu sinto falta de um silêncio.
Eu era silenciosa. E agora me comunico, mesmo sem falar.
Mas falta uma coisa.
E vou tê-la.
É uma espécie de liberdade,
Sem pedir licença a ninguém."

~ Clarice Lispector ~

domingo, março 22, 2009

Quietude

Quando o medo de voltar para casa no final do dia passou. Quando o silêncio deixa de ser angustiante e se torna agradável e necessário. Quando já se tem noção de quanto tempo dura um pacote de açúcar e qual a medida exata de pó de café. Quando os livros na estante deixam de representar um quadro para impressionar as visitas e passam a agradar seus próprios olhos. Quando você percebe que os chinelos lhe esperam à noite na exata posição em que você os deixou pela manhã. Quando a casa precisa ser limpa apenas porque há pó. Aí então você finalmente se acostumou a ser sozinho. E você descobriu que sozinho é o nome que se dá a quem precisa de doses diárias de quietude, porque acha que o mundo faz barulho demais.

Insônia

Raios de sol, aromas e toques
Não durmo porque vigio
Teus olhos escuros
Não durmo porque espero
De pálpebras cerradas
Que me abra
Mujer por Alejandra Bilbao



"Abraça o meu abraço e abre
aspas e couraça e casca e roupa
até a polpa o nervo a voz antes
da boca aonde a mesma brasa
ilesa siamesa dorme acesa
embaixo dágua abraço o breu
do meu abraço e sua no
meu suor na sua nossa massa
mancha que absorve engole
goma o seio soma o seu no
meio meu aberto peito perto
alcança o céu no vôo cego
que amalgama à nossa
sobra a escuridão que
orbita envolta cruza a
curva de um contorno que
dissolve quando encontra
outro contorno que
devolve ao mesmo a sua
carne pele em forma líquida
abraçada nesse agora que me
abraça e que me abraça e
que me abraça e que me abra"

~ Arnaldo Antunes In. Como é que chama o nome disso ~

domingo, março 08, 2009

A Bailarina Gorda

"Como toda bailarina ela sonhava com mil saltos mortais
Os dedos do destino a desenharam gorda demais
Cada volta ou pirueta era um desastre, eram risadas gerais
E os olhos do menino que ela amava a amavam magra de mais
Cada bola de sorvete é tanta culpa, era remorso demais
E o mais lindo vestido tá guardado: gorda demais
Cada abraço, um arrepio, ai, por um fio ele me apalpa por trás
E sente a carne mole, frouxa, coxa, gorda demais
Como toda bailarina ela sonhava com mil saltos mortais"

~ Oswaldo Montenegro ~

A mulher, o ônibus e a Kombi

Quando o motorista entrou, registrou alguma coisa na máquina de cartões e sentou-se em seu lugar. Deu a partida e, pela milésima vez, vi aquele terminal passando pelo vidro da janela em um final de tarde de domingo. Sentávamos todos virados para frente na direção em que seguia o ônibus. Lembrei das Kombis que me levavam à escola quando pequena e achei que o humor nesse ambiente era exatamente o oposto daquela euforia infantil. Íamos muito sérios. Parecia que todos queríamos estar sozinhos e era assim que dispunhamos nos assentos. Mas não havia lugares o suficiente para que ocupássemos um par de bancos cada. Assim, aqueles que tinham mais vontade de sentar do que de estar só instalavam-se ao lado de outros. Os que haviam chegado primeiro, por sua vez, ficavam insatisfeitos, porém não esboçavam reações: permaneciam imóveis e fingiam que o vizinho não existia. Parecíamos bonecos de cera. Não! Às vezes bonecos de cera são feitos sorrindo, parecíamos mesmo robôs. Era inevitável não relacionar a cena a um clipe cinzento, metálico ou futurista.
Eu estava afogada nesses pensamentos quando aquela mulher entrou. Estava molhada, despenteada e descalça. Perguntou com a voz inconveniente de quem corta longos silêncios em lugares comunitários se ainda dava tempo de tomar água antes de o ônibus partir. Contrariado, o homem que sentava em frente a ela respondeu que não sabia.
Sentou meio desajeita de frente para nós, naqueles bancos em que se vai de costas, e ficou nos observando. Seu olhar era ainda mais incômodo do que sua voz. Achei que, pelos olhos dela, todos víamos a nós mesmos. Eram olhos curiosos que nos levavam a autocensura e, de repente, me dei conta da expressão carregada que eu tinha no rosto e do quanto pesavam meus sapatos. Girei sobre os ombros e constatei que ela não tinha invadido apenas a mim. Cada uma daquelas pessoas, conscientes ou não, sentia-se desconfortável com a sua presença.
A diferença da mulher acentuava a medíocre igualdade dos outros. Lembrava-nos de nossos trabalhos chatos, relacionamentos sem vida, roupas de tons cinzentos, revoltas caladas, angústias acostumadas, enfim, de nossas vidas ruins.
Foi aí que entendi porque não gostamos desses lugares que nos deixam de costas. Estava tudo explicado, o mal estar e a ânsia de vômito: Sentados ali enxergávamos mais.