domingo, outubro 22, 2006

Tudo que eu posso fazer é tentar...

"Tudo que eu sei
É que nada é o que parece ser
Mas quanto mais eu cresço menos eu sei
E eu tenho vivido tantas vidas
Mesmo não sendo velho
E quanto mais eu vejo menos eu cresço
Quanto menos sementes eu tenho mais eu planto

Então eu vejo você aí
Querendo mais de mim
E tudo o que eu posso fazer é tentar...

Eu queria não ter visto toda a realidade
E que todas as pessoas reais
Realmente não são nada reais
Quanto mais eu aprendo mais eu choro
Dando adeus ao estilo de vida que eu pensei ter desenhado para mim

Então eu vejo você aí
Querendo mais de mim
E tudo o que eu posso fazer é tentar...

Todos os momentos que já passaram
Nós tentaremos voltar e fazê-los durar
Todas as coisas que nos queremos ser
Nós nunca seremos
Nós nunca seremos e isto é maravilhoso
Isto é a vida
Isto é você, isso sou eu

Nos somos livres no nosso amor."

Noite sim, noite não

Noite sim, noite não, travavam uma batalha pessoal. Ela jurara nunca desistir, ele parecia ter se comprometido com o contrário. Ela, uma moça transpirando jovialidade, cabelos longos e muito loiros que vinham esvoaçando em direção a ele sob o sereno da noite. Não importava quão difícil teria sido o dia, noite sim, noite não, enchia-se de disposição e voltava a insistir.
Ele, homem de cabelos experientes e olhos que, noite sim, noite não, entravam abertos na madrugada, não mostrava entusiasmo algum, fingia não conhecê-la.
A história havia iniciado há cerca de sete meses, em alguma noite do mês de abril, logo que ela se mudará para lá. Todas as noites ela voltava da faculdade, descia no ponto da rua principal, virava a primeira à esquerda, seguia reto a ruazinha deserta e, noite sim, noite não, lá estava ele, sentado no único ponto iluminado do perímetro, em sua guarita.
Ela se aproximava e, por um instante, não mais do que três segundos, podia observá-lo nitidamente através do vidro. Noite sim, noite não, lá estava ela, parada em frente ao portão. O meio segundo que ele demorava a abrir a passagem de pedestres era suficiente para que novamente emergisse o pensamento: "Será hoje!"
Entrava, virava-se lentamente e partia para uma nova investida:
- Boa noite! - Exclamava ela.
Nada! Nem uma expressão facial ou corporal, nem uma palavra. Completamente apático. Como ele conseguia? Era o que ela se perguntava sempre.
Ele era um caso a ser estudado, os estudiosos do Interacionismo Simbólico não teriam conseguido explicar-lhe tal falta de expressão. Não era uma estátua, não era um fantasma, quiçá um homem. Era um porteiro.
Um porteiro que nunca dizia “boa noite”, um porteiro que não comentava como estava o tempo...
E assim, noite sim noite não, ela voltava a cumprimentar-lhe, sempre com o mesmo entusiasmo, já havia tomado aquela situação como desafio pessoal.
Por vezes pensou em desistir, estava cansada daquilo, é complicado persistir em uma relação em que não há cooperação mútua. Mas sempre acabava voltando atrás, seria melhor para os dois que continuassem a luta, era um exercício de crescimento pessoal.
Lá por meados do mês de agosto ela ainda não havia tido progressos significantes. Esta noite estava acompanhada de um vizinho. No trajeto da ruela escura perguntou ao companheiro de passadas há quanto tempo morava no condomínio. Dez anos, respondeu-lhe e perguntou à moça porquê da indagação. – Por nada, apenas algo que me ocorreu.
Quando chegaram à guarita suas desconfianças se confirmaram:
- Boa Noite!- Exclamou o porteiro sorridente.
- Dez anos? – interrompeu ela atravessando-se a frente da resposta do acompanhante.
- O que disse? – perguntou-lhe o vizinho.
A garota nada respondeu. Demoraria dez anos para conseguir tal feito? Com certeza até lá já estaria terminando seu mestrado, talvez estivesse casada ou até mesmo com filhos. Era algo no qual precisava pensar. Valeria a pena o investimento de tanta energia e tempo? Sim, porque três segundos diários podem parecer pouco, mas estes três segundos, multiplicados por dez anos seriam um tempo significativo.
Aquela noite não conseguiu dormir. Sua mente não parava de raciocinar, precisava tomar uma decisão importante. E tomou.
Quando surgiram no horizonte os primeiro traços de claridade na manhã seguinte, ela já estava descendo as escadas, queria vê-lo antes da troca de turno. Durante a noite havia medido todos os prós e contras, pensou na quantidade de músculos que havia visto-o mexer, teve a impressão de ter visto até mesmo dentes... Não podia desistir. Agora ela sabia que a missão não seria impossível.
Estão agora em fins de outubro, ultimamente ela tem sentindo progressos. Outro dia chegou a mexer os lábios. Mas na maioria das vezes continua, noite sim, noite não, sentado em sua guarita, olhando fixo para o portão de carros, não comunicando coisa alguma, não comunicando nem o fato de não comunicar. Ela continua persistente, noite sim, noite não, uma nova tentativa...

domingo, outubro 15, 2006

O Monstro

"Quando era pequeno, você também não fantasiava que havia um monstro debaixo da sua cama só esperando a hora de pegar seu pé? Sair da cama no meio da noite para fazer xixi era um risco, lembra?
Era a oportunidade que o monstro esperava. E voltar para a cama depois do xixi era um risco ainda maior. O monstro tivera tempo de se preparar. O monstro estava nos esperando! A solução era pular na cama de uma distância segura, mesmo com o perigo de desmontar a cama ou errar o alvo e se esborrachar contra a parede. Qualquer coisa era preferível ao monstro pegar nosso pé.
Numa recente noite de insônia, fiquei pensando naquele estranho temor infantil. E se o monstro estivesse debaixo da minha cama naquele exato momento? Desativado, pois não fazia mais parte das minhas fantasias, mas ainda lá?
Decidi fazer um teste. Falei:
- Monstro?
Baixinho, para não acordar minha mulher e ter de dar explicações ("Não, não, estou falando comigo mesmo. É autocrítica"). Nenhuma resposta. Repeti:
- Monstro?
Ouvi um ruído. Um
"grmslmsk". Aquele som que a gente faz quando acorda, antes de se lembrar que língua fala. Insisti.
- Monstro?
- Quié.
- Você continua aí?
- Quem quer saber?
- Sou eu.
- Mas você não cresceu?
- Cresci. Pior, envelheci.
- E ainda acredita em mim?
- Não, claro. Eu só queria saber algumas coisas...
- O que, por exemplo?
- Por que vocês queriam pegar o nosso pé? Qual era o objetivo?
- Objetivo nenhum. Desde quando fantasia de criança precisa de objetivo, motivo ou explicação? Eu era só uma manifestação dos terrores dos lugares escuros, do mal escondido em tudo que não se pode ver, mesmo dentro de casa. O pavor do invisível. A primeira angústia humana. E a última.
- E o que vocês fariam com o nosso pé, se o pegassem?
- Não sei. Ninguém sabe. Em toda a história do mundo, não há um caso registrado de monstro debaixo da cama que tenha pego um pé de criança. Criança alguma jamais desapareceu embaixo da própria cama. Nós éramos só a ameaça, a hipótese de malignidade que há em tudo. Existíamos na imaginação de vocês, que é onde nascem todos os monstros.
- Como você é? É algum tipo de réptil? Algo como um jacaré?
- E eu sei? Somos como vocês nos imaginavam. Nós não precisamos nos imaginar.
- E o que você faz embaixo da minha cama?
- Bom, eu estava dormindo. Você me acordou.
- Não. O que você faz o tempo todo?
- Nada. É o que faço desde que você deixou de acreditar em mim. Durmo. Sou os seus pavores de infância, adormecidos. Só acordei agora para esta ocasião especial: você voltou a me imaginar.
- É que eu estava com insônia, comecei a pensar nas minhas fantasias infantis, sabe como é. A gente vai ficando meio sentimental... Eu precisava de alguém para compartilhar minhas lembranças de criança. E quem melhor do que alguém daquele tempo? Você, mais do que ninguém, sabe do que eu estou falando. Não é, monstro?
- Grmrsch...
- Monstro. Acorda!
- Ahm, yam, que foi?
- Fique acordado. Para lembrarmos os velhos tempos. Para conversarmos sobre a memória, o medo e os mistérios da vida. Para...
- Me deixe dormir. Eu, ao contrário de você, não tenho dúvidas, lembranças, temores, nostalgia ou insônia. Estou aposentado e quero a paz a que tenho direito.
- Mas, monstro, e o pavor? E a sua missão de representar a malignidade inerente a tudo, a ameaça implícita do invisível?
- Me acorde quando você for fazer xixi."

(Luiz Fernando Veríssimo)

sexta-feira, outubro 13, 2006

Astrologia

"Minha estrela não é a de Belém:
A que, parada, aguarda o peregrino.
Sem importar-se com qualquer destino
A minha estrela vai seguindo além...

— Meu Deus, o que é que esse menino tem? —
Já suspeitavam desde eu pequenino.
O que eu tenho? É uma estrela em desatino...
E nos desentendemos muito bem!

E quando tudo parecia a esmo
E nesses descaminhos me perdia
Encontrei muitas vezes a mim mesmo...

Eu temo é uma traição do instinto
Que me liberte, por acaso, um dia
Deste velho e encantado Labirinto"

(Mário Quintana)

domingo, outubro 08, 2006

***
“É preferível o erro à omissão. O fracasso, ao tédio. O escândalo, ao vazio. Porque já vi grandes livros e filmes sobre a tristeza, a tragédia, o fracasso. Mas ninguém narra o ócio, a acomodação, o não fazer, o remanso. Colabore com seu biógrafo. Faça, erre, tente, falhe, lute. Mas, por favor, não jogue fora, se acomodando, a extraordinária oportunidade de ter vivido. Tendo consciência de que, cada homem foi feito para fazer história. Que todo homem é um milagre e traz em si uma revolução. Que é mais do que sexo ou dinheiro. Você foi criado, para construir pirâmides e versos, descobrir continentes e mundos, e caminhar sempre, com um saco de interrogações na mão e uma caixa de possibilidades na outra”.

(Nizam Guanais)

sábado, outubro 07, 2006

"O pior dos problemas da gente é que ninguém tem nada com isso."

(Mario Quintana - Caderno H)