quarta-feira, outubro 29, 2008

Acordou cidadão, dormiu pedra

Acordou um dia e não lembrou de nada. Não sabia seu nome, idade, endereço, onde estava. No chão, deitado, olhou para um lado e viu pedras paver, virou para outro e viu mais pedras paver e uma placa de “Estamos em obras”. Levantou-se e a sua volta girava uma cidade de pessoas que passavam. Tanto acompanhou passos que tonteou e, para não cair, teve que se sentar sob as pedras de concreto. Pôs-se a pensar e, embora o céu escaldasse, teve uma idéia. Mesmo não sabendo, achou que nunca havia tido idéia tão boa. Não sabia o que já sabia, mas sentiu-se excitado com a idéia de apreender o mundo todo novamente. Foi então que tomou a decisão mais importante de que se lembrava – é certo que não se lembra de nada, mas isso não vêm ao caso. Pegaria um ônibus ali ao lado e descobriria tudo.
Contornou a enorme estrutura de onde entravam e saiam ônibus e recuou ao som de um apito. Difícil entender porque tamanha rispidez. E isso ainda não era o mais incompreensível. Para poder ir e vir nesta cidade, explicaram-lhe, era preciso ter R$ 2,05 no bolso. Desapontado, porém, não desanimado resolveu falar com a pessoa que cuidava do pedaço. Com olhar entre espantado e desconfiado o ambulante que vendia algodão doce, cocada, pipoca e amendoim por ali, apontou para um bonito prédio. “Lá, em cima de um morro, é a prefeitura”, informou-o. Chegando, ficou feliz por ver que mais pessoas haviam tido a mesma idéia. Mais de uma centena de cidadãos faziam filas e retiravam senhas, certamente para apresentar reclamações e sugestões de gestão da cidade. Retirou a senha e sentou-se numa das muitas cadeiras do salão. Mas, para seu novo espanto, percebeu que as pessoas cujas senhas eram chamadas dirigiam-se aos balcões e pagavam coisas. Curioso, questionou a senhora sentada ao lado. “A gente vêm aqui pagar impostos”, explicou ela.
Então era para isso que servia a prefeitura? Apenas para recolher impostos? Ao menos para o povo, sim! No setor de informações disseram que o prefeito estava, mas não era tão fácil subir para trocar dois dedinhos de prosa. Atender a população não é a prioridade do chefe do Executivo, “que tem coisas muito mais importantes a fazer”, informou a moça do balcão de informações. Atrás dela, na parede, havia um cartaz onde se lia “Cidade dos príncipes, das flores e das bicicletas”.
Cabisbaixo, mas consolado com a idéia de que em algum lugar por aqui havia príncipes, flores e pessoas felizes andando de bicicleta, foi descendo degraus rumo à rua. Havia um cheiro ruim por ali. Pensativo, seguiu a calçada e deparou-se com o Templo da Justiça Municipal. Pensou que a justiça devia ser bonita, porque de lá só saiam pessoas muito bonitas e bem arrumadas. Depois de um sem tempo de observações, retomou a caminhada. Nem bem deu dez passos, avistou um prédio branco e amarelo; no alto em letras grandes lia-se “Câmara Municipal de Vereadores”. Agora sim, pensou ele, encontrara a Ágora do Povo. Este é o lugar onde os eleitos pela população fazem leis e fiscalizam o que faz o prefeito, explicou-lhe um pequeno rapazinho na saleta dos “vereadores mirins”.
Tomou acento no plenário de onde disseram que podia assistir os trabalhos. Descobriu um espetáculo trágico-cômico da melhor qualidade. Os legisladores brigavam por nomes de ruas, discutiam sexo de anjos, aprovavam doação de dinheiro do povo às empresas privadas, davam tapinhas nas costas, conversavam alto e cortavam o microfone de um homem que tentava dizer que nada daquilo estava certo. Ele quis chamar as meninas que levavam garrafas de café de lá para cá pelos corredores para assistirem o show, mas elas disseram que tinham vergonha de entrar lá.

Ora bolas, vergonha!

Saindo do prédio respirou fundo o ar da noite, e o cheiro podre do grande esgoto em frente invadiu suas narinas e pulmões. Foi andando para o lugar onde tinha acordado. Pensou nas flores que não vira, bicicletas disputando espaço com pessoas em calçadas, indagou-se sobre o príncipe que não veio salvar pessoas que passavam a vida com medo e envergonhadas. Então deitou novamente no mar de concreto e virou outra vez uma pedra paver.

Sobre quando as crianças crescem

Não eram mais crianças. Um dia se encontraram num assalto. Ela a assaltante, ele a vítima. Não que a cidade em que moravam fosse muito grande a ponto de não poderem nunca, sendo dois jovens da mesma idade, ter se encontrado. Eles apenas moravam em planetas diferentes.
Para poder opinar sobre a infância em tempos, diz-se, de pós-modernidade, só no que pude pensar foi neste ato sublime de união entre duas classes sociais tão opostas: o assalto.
Não fossem todos os fatores imagináveis somados ao fato de ela não vestir-se tão bem como ele, estes dois formosos jovens poderiam ter se apaixonado. Havia neles uma coisa em comum: cada qual morava em um planeta.
Na educação dele influenciaram as revistas de educação, as orientadoras psicopedagógicas da escola onde estudou e os programas educativos da TV por assinatura. Na dela, a escola sem biblioteca, o tio revendedor de crack e a pouca atenção da mãe que cuidava de mais cinco filhos pequenos.
Viveram suas infâncias ao mesmo tempo, mas não era de infâncias como a dela que se falava nos comerciais de Nescau. Ele também era de certa forma excluído, na lista dos mais procurados não havia nenhum parente.
Então, ela sussurrou que ele passasse o relógio e todo o dinheiro que levava na carteira. Ele pôde sentir o seu mau cheiro e apenas o medo impediu-o de vomitar. Ela sentiu seu perfume e ele era tão belo quanto os meninos dos seriados TV.
Na escola que ela freqüentou quando criança, as aulas eram improdutivas e o que mais se aprendia era a física relacionada à velocidade e peso das bolinhas de papel. Na hora da merenda, feijão de terceira qualidade. Para ela, a comida era gostosa e, muitas vezes, a melhor parte de ir para a aula. À tarde, pipa nas ladeiras do morro onde morava uma amiga sua ou atirar pedra no esgoto a céu aberto, em frente a sua casa. Algumas vezes, ela nem dormia em casa e sua mãe parecia nem perceber.
Na escola dele, professores especializados ensinavam brincando e as bibliotecas eram projetadas para se mostrarem sedutoras aos olhos do futuro da humanidade. Ir para a aula só era chato porque o fazia perder algumas horas em que poderia estar na internet. As suas navegações na internet eram restringidas por seus pais, que o julgavam jovem demais para ter contato com todo tipo de imagens horrorosas que a web pode oferecer. Para ocupar o restante do dia, ele ainda fazia inglês e natação.
Quando ela colocou os pertences no bolso, falou-lhe ainda que se gritasse ganharia um corte na garganta. Então, abaixou o caco de vidro com que o ameaçava e saiu em disparada para o lado oposto de onde viera.
Ele ficou parado, soluçando em estado de choque. Estava apenas passeando inocentemente pela praia. Nunca antes, alguém no mundo sofrera tamanha injustiça.
Naquela tarde, o pai dele demitiu mais seis empregados com cinco filhos cada.