sábado, junho 30, 2007

Noite de Natal

"Fernando Silva dirige um hospital para crianças, em Manágua.
Na véspera do Natal, ficou trabalhando até muito tarde. Os foguetes espocavam e os fogos de artifício começavam a iluminar o céu quando Fernando decidiu ir embora. Em casa, esperavam por ele para festejar.
Fez um útimo percorrido pelas salas, vendo se tudo ficava em ordem, e estava nessas quando sentiu que passos o seguiam. Passos de algodão: virou e descobriu que um dos doentinhos andava atrás dele. Na penúmbra, reconheceu-o. Era um menino que estava sozinho.
Fernando reconheceu sua cara marcada pela morte e aqueles olhos que pediam desculpas, ou talvez pedissem licença.
Fernando aproximou-se e o menino roçou-o com a mão:
- Diga para... - sussurrou o menino. - Diga para alguém que eu estou aqui."

(Eduardo Galeano)

sexta-feira, junho 22, 2007

A agulha perfura cuidadosamente a epiderme. Arbitrariamente, sem pedir licença, vai rasgando essa fina camada que separa o interno puro e límpido, do externo empoeirado, bacterizado. Furos nas pernas, nos ombros, nas costas, na cabeça, na pélvis. Furos que não doem.
Os olhos que se fecham, o corpo que relaxa e que esquece do mundo ali em baixo, do lado de fora da janela. E as agulhas e os furos e o fogo. A brasa sem piedade que aquece até o quase insuportável, a vermelhidão, o estupor e, enfim, o alívio. E o ser-humano ali em frente, estendido na cama alva, tão frágil, tão fortaleza, tanta vida, tanta fragilidade...
As lágrimas e o clima doentio que, por vezes, no início, obscurecem a sala tão clara e arejada, transformam-se logo em suspiros e sorrisos agradecidos de quem já não sente mais a dor. E as conversas de comadres lado-a-lado, maca-a-maca, dor-a-dor já livraram muita gente da depressão e dos pensamentos de quem quer matar-se.

quarta-feira, junho 13, 2007

É ela quem acende a luz do corredor todos os dias. Às vezes também é ela quem apaga. Ela e aquele lugar têm uma tênue relação, como um fino fio de ligamento de destinos. Durante a segunda parte da infância e adolescência lembrava-se desse prédio. Vinha-lhe à mente uma entrada escura e uma estreita sala de espera. Era a sala de espera da psicóloga na qual seus pais as levavam – a ela e a irmã – quando pequeninas. Depois mudou-se, a inevitável separação dos pais, a vida seguiu, as pessoas cresceram, mudaram também, o lugar sempre vinha à mente.
Aos dezessete anos ela passava por uma fase de grandes modificações na vida. Tantas coisas realizadas nesse meio tempo... (A menininha da quinta série nem poderia imaginar). Estava agora trabalhando e o chefe decidiu que não precisava mais dos seus serviços de telefonista, mas ele gostava muito dela. Se há uma coisa que sempre fez bem foi enganar as pessoas e fazê-las acreditar piamente na sua competência. Na mesma conversa em que ele a dispensou, deu-lhe também um papelzinho com telefone e endereço de um conhecido que procurava uma funcionária. Desconfiou do endereço, mas calou. Ninguém poderia entender que aquilo no fundo tinha todo um significado.
No primeiro dia acreditou que não se adaptaria, e isso já faz quase dois anos. Aquele lugar a viu desistir da idéia de ser psicóloga, a viu decidir ser jornalista, a viu passar no vestibular, chorar alegrias e decepções familiares. Já testemunhou três namoros mal sucedidos, já a viu enraivecida com o patronato, já a viu ficar em exame, trabalhar até às nove da noite, chegar meia-hora atrasada, viu o início do seu primeiro livro e desconfio que ainda verá muito mais. Lá aprendeu a lidar com seres-humanos, tocar neles, ajudá-los, ser uma pessoa humilde. Foi lá que entendeu o que o velho Quintana quis dizer ao escrever que não importa a fome na China, o nossos calos sempre doem mais.
É incompreensível para qualquer um, mas para ela aquele lugar tem um “q” de seu crescimento. Existe, entre ela e ele, uma ligação que o destino não deixa romper. Existe algo que não deve ser quebrado até que ela enfim esteja pronta. E esse dia, parece, não tardará.

sexta-feira, junho 08, 2007

Vinha subindo a rua central, pensando em alguma coisa que no momento foge à memória da narradora. Pensava em coisas variadas, sem muita importância. Ou talvez tivesse sim alguma importância o que a moça pensava naquela hora, porque naqueles dias ela andava preocupada com alguns assuntos sérios. Vinha devagar pela calçada, passou os olhos com rapidez pelo chafariz do hotel, voltou a olhar para os pés, mas em seguida olhou novamente para a água normativamente turbulenta do ornamento de jardim do hotel. Tão rápido como são os pensamentos, pensou, olhando para as ondas que os jatos causavam na água estática abaixo, que era em momentos assim que grandes gênios haviam tido relâmpagos de genialidade. Ainda dentro da mesma fração de instante insistiu um pouco mais no olhar fixado na água. Nada. Vai ver ela não era mesmo um gênio. Vai ver era só alguém comum, subindo a rua central.

La Valse (1889-1905)



Não é preciso dizer muito quando se trata da obra de Camille Claudel, ela grita por si só. Mas para descrever a mulher que foi Camille, é imprescindível citar talento, obstinação, dedicação e incompreensão. Toda a tristeza e intensidade da sua alma, ela pôs em suas esculturas, quase como uma autobiografia.
Levante devagarzinho, calma, sem afobação, acenda a luz, não, não acenda pode chamar a atenção. Enrole-se no cobertor de lã, está frio, aperte o botãozinho tentando abafar o clic denunciador, abaixe o volume das caixinhas de som para que ninguém ouça a musiquinha também denunciadora, quietinha, shuhh, sem barulho, se a mãe acorda, vem logo perguntar porque fica até tão tarde em frente ao computador. Tem insônia coitadinha, gosta tanto de escrever e queria conversar com aquele amigo que só entra de madrugada no msn. Escreva tentando não digitar com muita força, senão esqueça. Os olhos vão começando a pesar, as palavras vão saindo errraaads, desliga tudo, deita, vai dormir, amanhã não precisa acordar cedo.

domingo, junho 03, 2007

"Eu tava triste, tristinho.
Mais sem graça que a top model magrela
na passarela.
Eu tava só, sozinho.
Mais solitário que um paulistano,
que um canastrão na hora que cai o pano,
que um vilão de filme mexicano.
Tava mais bobo que banda de rock,
que um palhaço do circo Vostok.

Mas ontem eu recebi um telegrama,
era você de Aracaju ou do Alabama.
Dizendo nego, sinta-se feliz
porque no mundo tem alguém que diz:



Que muito te ama, que tanto te ama,
que muito, muito te ama, que tanto te ama




Por isso hoje eu acordei
com uma vontade danada
de mandar flores ao delegado,
de bater na porta do vizinho
e desejar bom dia,
de beijar o português da padaria..."


(Zeca Baleiro)

Deixe estar

Deixe-me gritar, surtar, ensurdecer quem está em volta. Mas não esqueça que às vezes a minha loucura é calar. Permita que eu levante durante a madrugada e desça as escadas pra entoar alto, no meio da rua, uma música que me emociona. Não ligue se eu gosto de passear pelas ruas do centro da cidade de noite e observar as coisas em volta. Eu gosto de observar as coisas, aprendo muito com elas. Não pergunte se estou triste, porque isso me entristece. Aprenda a ler meus pensamentos, isso às vezes vai me irritar, mas na maior parte do tempo vai facilitar muito as coisas. Há dias em que quero fazer um filho só pra escapar da rotina, têm outros em que a rotina me consola muito. E nesses dias, não necessariamente eu estou mal. Aprenda que eu não sou normal. Aprenda que a minha anormalidade me aquieta e por isso pareço tão bem, pareço assim porque o sou. Porque treinei muito para ser assim. Deixe eu repetir as palavras. Deixe estar por que na maioria das vezes o que eu falo não tem coerência. Me deixa dormir aí hoje?
Sorria menina, sorria. Mas não precisa gargalhar se não quiser, se isso, nesse momento, não for espontâneo. Sorria apenas em seu estado de espírito, isso basta. Esteja em paz com você, esqueça os outros. Não há a mínima necessidade de provar nada para ninguém.
Olhe em volta, uma vida bem legal a sua, heim? Pessoas animadas que te chamam pra dançar. Não precisa ir se não quiser, mas se sinta bem por ser amada. Valorize tudo isso; valorize cada pensamento que alguém dedicou a você. Diga às pessoas que estão envolta que elas são os tesouros da sua vida, que é com elas que está todo o seu valor. Mas não precisa concordar com tudo sempre se não quiser, o importante é o que se sente.