quarta-feira, março 28, 2007


A Aranha

Lá, onde passo meus dias, um após outro e depois outro, no lugar onde eu trabalho, fiz uma amiga um dia destes. Estava eu, limpando o local como faço sempre no final de todos os dias e, como que de repente, surge por trás do armarinho branco da sala da patroa uma aranha de tamanho médio e muito preta.
Minha intenção primeira foi dar-lhe uma vassourada, como seria de se esperar na minha posição de encarregada da limpeza, mas surgiu-me a questão, por quê?
Fiquei ali, cerca de meio minuto observando a criaturinha asquerosa que trabalhava dedicadamente em seu ofício de fiar teias, e confesso, tive pena.
Tivesse, meu raro leitor, passado um só motivo para fazê-lo no devanear de meus pensamentos, e eu a teria esmagado. Mas não passou. Ao invés disso fiquei lá pensando no quão maldosas podem ser as pessoas sem mesmo se darem conta do quanto.
Pobre aranhazinha, tão solitária. Não é fácil nesse mundo ser preta, desprovida de vis metais e mãe solteira. Ela trabalhava muito e com afinco, mais do que eu naquela hora, e certamente ganhava ainda menos do que eu. E assim, sem mais nem menos, apareceria alguém e dar-lhe-ia uma vassourada impiedosa sem nem ao menos deixar-lhe proferir umas quantas últimas palavras. E aí me pus a pensar em qual seriam suas últimas palavras se eu, supondo que dominasse seu idioma, lhe perguntasse. Ela poderia pedir-me que desse lembranças à mãe da qual se perdera já a um bom tempo lá pelas bandas da outra extremidade da sala; ou poderia gritar efusivamente que morre sim, mas morre honrada, virgem; ou poderia lamentar-se pelo mesmo motivo.
Resolvi então não mata-la, se o motivo de uma morte angustiante fosse esse último sugerido, dar-lhe-ia mais um tempo para que aproveitasse sim as coisas boas da sua vida de aranha formosa. E assim travamos um trato, eu não a mataria e ela me prometeria que, daqui por diante, sairia por aí a ser feliz.
Antes que eu me virasse para continuar com a varrição, fiz-lhe ainda uma recomendação, não apareças por aí quando a patroa estiver na sala.

domingo, março 25, 2007


Eu escreveria algo bem melancólico,
teclaria ao ritmo da música que ouço agora,
mas o que sinto é por demais assunto meu.
Ao invés disso fico aqui,
Escrevendo e apagando sempre
Sorte nossa os tempos terem mudado,
Fosse antigamente,
eu viveria sobre um mar de farelos de borracha
Apagando pensamentos,
E sentimentos
Reescrevendo sempre, até que a folha furasse
Ou que o coração se cansasse
Para então recomeçar.

sábado, março 17, 2007


EU: SENHORA DA NÃO INSPIRAÇÃO...

Créditos a Géssica Hellmann
Obra de dezoito anos de freqüentes visitas ao espelho, descobri que tenho um grande queixo e uma grande testa. Descobri que meu rosto é habitação digna para muitas espinhas, descobri uma volta nunca antes desbravada na orelha. Reparei no não se definir da cor dos meus olhos e na covinha de um lado só da minha bochecha. A covinha singular sempre me faz lembrar daquela frase do Mário Quintana: “Símbolo da mais completa solidão”. Descobri que meu cabelo tem sido o mesmo, desde que saiu quando eu ainda era um bebê. Percebi um pescoço ossudo em um corpo rechonchudo. Descobri uma cara meio que de batata que sempre utilizo para tirar fotos, uma sobrancelha anarquista e um nariz que se posiciona, vejam só, no meio da cara.
Obra de dezoito anos de muita identificação com essa imagem diariamente refletida no espelho, gosto de cada uma destas coisas. E pronto.

sábado, março 10, 2007

A Porta


"Eu sou feita de madeira
Madeira, matéria morta
Mas não há coisa no mundo
Mais viva do que uma porta.
Eu abro devagarinho
Pra passar o menininho
Eu abro bem com cuidado
Pra passar o namorado
Eu abro bem prazenteira
Pra passar a cozinheira
Eu abro de supetão
Pra passar o capitão.
Só não abro pra essa gente
Que diz (a mim bem me importa...)
Que se uma pessoa é burra
É burra como uma porta.
Eu sou muito inteligente!
Eu fecho a frente da casa
Fecho a frente do quartel
Fecho tudo nesse mundo
Só vivo aberta no céu!"
(Vinícius de Moraes)

sexta-feira, março 09, 2007


"Pela janela vejo fumaça, vejo pessoas
Na rua os carros, no céu o sol e a chuva
O telefone tocou
na mente fantasia
Você me ligou naquela tarde vazia
E me valeu o dia"
(Ira!)

quinta-feira, março 08, 2007

Passos

O ritmo da vida de alguém pode ser medido a partir do ritmo de suas passadas. Algumas pessoas andam muito rápido, estas chegarão aos sessenta anos com a sensação de terem vivido apenas trinta, e, quando seus joelhos já cansados as impedirem de continuar a correr, olhar-se-ão no espelho e perguntarão em qual das estradas pelas quais passaram despercebidas deixaram a outra metade da vida. Mas há também os sujeitos humanos que se recusam a firmar diariamente compromisso sério com o tempo, estes chegarão aos sessenta com uma experiência digna dos que chegam aos cento e vinte, e, em um de seus passeios agradáveis, um dia aconselharão uma jovem estudante de jornalismo a não correr... Nunca.



Passo, pensamentos, passo, que vão e vem, passo, com o embalar dos calcanhares, passo, será a morte da cabrita, passo, será o amor impossível, passo, será o possível amor, passo, será a dificuldade de uma amiga, passo, semana estranha, passo, semana incompleta, passo, muito trabalho, passo, feriado conveniente, passo, quatro conversas sérias, passo, coração mais aliviado, passo, odeio muito, passo, magoar as pessoas, passo, poucas pessoas me ouvem, passo, lembro de uma noite engraçada, passo, uma pessoa querida, passo, meditação sobre conversa com amigo, passo, muito sono, passo, não consigo, passo, me sentir tranqüila, passo, enquanto ainda tenho alguma coisa pra falar, passo, que dia entrego o livro, passo, tenho vergonha da demora, passo, emagreci um pouco, passo, esqueço de comer, passo, como manter este corpinho, passo, quero ver acordar, passo, amanhã, passo, quero um assunto, passo, para um pequeno texto, passo, bom assunto, passo, passadas.

terça-feira, março 06, 2007

Eu nunca me mudo, e existem coisas em mim que nunca mudam:

Arrepender-me após uma grande loucura
Não encontrar nunca as palavras apropriadas nos momentos apropriados
Perdoar demais pessoas que não merecem
Esconder-me quando ouço berros
Confundir sentimentos
Ignorá-los por vezes
Fazer maus e precipitados julgamentos
Distrair-me com livros para acalmar o coração
Ouvir músicas de que gosto até não gostar mais
Escrever quando estou triste
Escrever coisas ruins, e tristes, quando estou triste
Não dormir o suficiente
Não ler os livros que desgosto até o final
Não cultivar amores, nem amizades
Desistir fácil
Deixar-me influenciar
Insistir até que o fim do texto fique aceitável...

domingo, março 04, 2007

Existem muitas pessoas no mundo por quem eu daria a minha vida, mas por eles eu daria a minha vida duas vezes...


Metade

"Que a força do medo que tenho
não me impeça de ver o que anseio
que a morte de tudo em que acredito
não me tape os ouvidos e a boca
pois metade de mim é o que eu grito
mas a outra metade é silêncio.
Que a música que ouço ao longe
seja linda ainda que tristeza
que a mulher que eu amo seja pra sempre amada
mesmo que distante
porque metade de mim é partida
mas a outra metade é saudade.
Que as palavras que falo
não sejam ouvidas como prece nem repetidas com fervor
apenas respeitadas como a única coisa
que resta a um homem inundado de sentimento
porque metade de mim é o que ouço
mas a outra metade é o que calo
Que essa minha vontade de ir embora
se transforme na calma e na paz que eu mereço
que essa tensão que me corrói por dentro
seja um dia recompensada
porque metade de mim é o que penso
e a outra metade um vulcão.
Que o medo da solidão se afaste
que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável
que o espelho reflita em meu rosto um doce sorriso
que me lembro ter dado na infância
porque metade de mim é a lembrança do que fui
e a outra metade não sei
Que não seja preciso mais que uma simples alegria
pra me fazer aquietar o espírito
e que o teu silêncio me fale cada vez mais
porque metade de mim é abrigo
mas a outra metade é cansaço
Que a arte nos aponte uma resposta
mesmo que ela não saiba
e que ninguém a tente complicar
porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
porque metade de mim é platéia
e a outra metade é a canção
E que a minha loucura seja perdoada
porque metade de mim é amor
e a outra metade também."

(Oswaldo Montenegro)

Vocês lembram do S. Genésio, o marido da D. Maria?
Ontem ele morreu.

quinta-feira, março 01, 2007

Suor escorrendo por rostos e corpos, molhando roupas, penetrando almas. Caras cansadas, mãos trêmulas, olhares perdidos... Porque parecem tão tristes estas pessoas? O ponto está cheio, a chuva ameaça, mas fica apenas na promessa, o ônibus demora. Eu estou com elas, em meio a elas, e desconfio me parecer com elas. Muitas pessoas, dezenas delas, chega o ônibus muito cheio, é hora de pico, a situação não deveria ser aceitável, mas tantas pessoas, nem uma delas reclama, nem eu... A vida destas pessoas, um eterno acostumar-se, conformar-se, é apenas mais uma etapa ruim, de um dia ruim, de toda uma vida ruim. O ônibus chega, está realmente muito cheio, há uma grávida de pé, sufocando de calor, há velhas se acotovelando, um bêbado, um crente e dezenas de figurantes reais, entre eles eu... Ninguém fala nada, nem eu. A indignação me sobe a garganta, engasgo, tusso, apenas mais uma tosse em um mar de bactérias. Bactérias tristes, cansadas, sofridas. O pneu estoura por excesso de peso, quem diria? Acostuma-se aos absurdos do mundo, ninguém percebeu a gravidade. Apenas a grávida, ela percebeu, empalideceu, imaginei-a parindo ali. As portas abrem, só agora é possível ver a quantidade de bichos humanos que se espremiam dentro da lata amarela com quatro rodas, agora três. Em menos de dois minutos a próxima condução lota e já não é mais possível distinguir os pertencentes ao grupo que vinha com o segundo ônibus dos que o invadiram, subitamente, pelas portas traseiras. As pessoas iam chegando e contando umas as outras o acontecido, alguns balançavam a cabeça em sinal de reprovação, outras comentavam coisa qualquer, algumas sorriam. Um homem grita “Este fim de semana o padre vai sentir falta da gente na confissão, PORQUE JÁ PAGAMOS TODOS OS NOSSOS PECADOS!”, uma mulher comentou que ia perder a novela das oito. O próximo ponto era o meu, fico por aqui, meio que rindo meio que chorando, me sentindo impotente, me sentindo muito parte integrante da cena.
Dobrando a esquina lembro-me da câmera fotográfica dentro da bolsa, que oportunidade perdida. Ainda não me acostumei com o meu papel social.

“...queimar os barcos, cortar as pontes, cortar pelo são, cortar a direito, cortar as voltas, cortar o mal pela raiz, perdido por dez perdido por cem, homem perdido não quer conselhos, desistir a vista da meta, estão verdes não prestam, melhor um pássaro na mão que dois a voar, estas e muitas mais, e todas afinal para dizer uma só coisa, O que não quero é o que não posso, o que não posso é o que não quero.”

(José Saramago)