terça-feira, dezembro 15, 2009

O velório e a verdade

Quando sentiu o carro sair do controle Leandro manteve a tranquilidade. Foi muito inesperado, não era assim que as pessoas morriam. Ele tinha imaginado a morte muitas vezes e, por isso, sabia que aquele não era o momento. Apenas tentou manobrar e, mesmo quando a cerca de proteção se rompeu e o carro deslizou morro abaixo, ainda estava calmo.

Era 21 de setembro de 1999, primeiro dia da primavera, e havia um buquê de flores no banco traseiro do carro. Muito se falou sobre essa coincidência depois, mas foi como um retrato bonito que se tira ao acaso.

Às oito e meia o telefone tocou. Serena escutou apreensiva o que lhe falavam do outro lado da linha, depois parou em frente à janela, imersa em pensamentos profundos e, então, resolveu bater no quarto de Alícia.

− Filha.
− Mãe?
− Filha, o Leandro se acidentou.

Alícia ouviu tais palavras dos lábios da mãe sem se desesperar. Ainda estava um pouco sonolenta, e tentava inconscientemente criar uma barreira para rejeitar aquilo que todos mais temem ouvir. Em um relâmpago de pensamento lembrou-se de que dia era, imaginou flores e, sem saber explicar, teve uma certeza desesperada de que era impossível o pior ter acontecido. Talvez por esse motivo, quando Serena contou a ela que o ex-namorado morrera, Alícia teve meio minuto de incompreensão.

Mas não havia como negar. A notícia fora despejada em sua cabeça e de lá não sairia nunca mais. Primeiro um calor insuportável subiu pela garganta e uma lágrima pesada caiu. Depois outra e outra e soluços. Uma hora inteira de soluços. A mãe lhe deu chá e remédios, mas Alícia não dormiu. Estava em estado de choque, deitada com os olhos fechados e completamente acordada.

Há alguns dias a garota decidira pedir para reatarem. Haviam terminado há três meses, mas duas semanas depois voltaram a se encontrar. Agora, Alícia só conseguia pensar que não dera tempo e que tudo poderia ser diferente.

Naquela manhã Leandro voltava de um fim de semana na cidade em que moravam os pais e trazia flores para a avó. Não era justo. Alícia não acreditava em Deus, mas naquele dia ignorou isso só para poder culpar alguém.

Serena pediu que não fosse ao enterro. Não tinha motivo, dizia. Achava que a menina se sentiria muito pior, que a viagem seria dolorosa, que era melhor “lembrar dele vivo”. Mas Alícia nunca foi do tipo que atende a apelos e, mesmo após tantos sedativos, agiu com a conhecida obstinação.

− Eu vou.

E foi. Quando chegou à capela da cidadezinha em que a família de Leandro morava, Alícia não chorava mais. Observou as feições tristes, as lamúrias, os olhares distantes, as flores horrorosas, a falta da mãe que fora hospitalizada. Tudo fazia parte de um cenário clichê. Essa é a foto da morte e nunca ninguém cogitou mudá-la. Alícia tinha o rosto seco, mantinha-se muda e agora entendia a expressão “silêncio mortal”.

Deu um abraço na irmã do falecido e permaneceu ao lado dela, tentando descobrir o que havia de errado por ali. Percorreu com os olhos toda a sala, olhou para o caixão – ainda não chegara perto dele – e descobriu o que estava fora do lugar. Do lado direito do morto, chorando, havia uma moça de cabelos muito negros e olhos castanhos. Uma menina com feições comuns, magra e bonita, que tocava um Leandro desfalecido. Alicia soube que sobrava alguém exatamente ali. Baixou os olhos e teve certeza de quem faltava ao seu lado.

− É a namorada dele, falou a ex-cunhada.

Alícia já havia entendido e, tão rápido quanto tudo naquele dia, decidira calar-se. A menina era muito jovem, pensou. Não pôde evitar um humor proibido quando comparou a situação com as histórias de Nelson Rodrigues. Nem um pensamento egoísta da recente descoberta de que, mesmo vivo, Leandro não voltaria mesmo a ser seu. Naquele dia os dois amores de Leandro enterraram-no, mas Alicia o sepultou mais fundo, dentro de si.

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