segunda-feira, dezembro 21, 2009

Direito ao delírio

"Já está nascendo o novo milênio. Não dá para levar muito a sério o assunto: afinal, o ano 2001 dos cristãos é o ano 1379 dos muçulmanos, o 5114 dos maias e o 5762 dos judeus. O novo milênio nasce num 1º de janeiro por obra e graça de um capricho dos senadores do Império Romano, que um bom dia decidiram quebrar a tradição que mandava celebrar o ano-novo no começo da primavera. E a conta dos anos da era cristã deriva de outro capricho: um bom dia, o papa de Roma decidiu datar o nascimento de Jesus, embora ninguém saiba quando nasceu.

O tempo zomba dos limites que lhe atribuímos para crer na fantasia de que nos obedece; mas o mundo inteiro celebra e teme essa fronteira.

Um convite ao vôo

Milênio vai, milênio vem, a ocasião é propícia para que os oradores de inflamado verbo discursem sobre os destinos da humanidade e para que os porta-vozes da ira de Deus anunciem o fim do mundo e o aniquilamento geral, enquanto o tempo, de boca fechada, continua sua caminhada ao longo da eternidade e do mistério.

Verdade seja dita, não há quem resista; numa data assim, por arbitrária que seja , qualquer um sente a tentação de perguntar-se como será o tempo que será. E vá-se lá o tempo que será. Temos uma única certeza: no século 21, se ainda estivermos aqui, todos nós seremos gente do século passado e, pior ainda, do milênio passado.

Embora não possamos adivinhar o tempo que será temos, sim, o direito de imaginar o que queremos que seja. Em 1948 e em 1976, as Nações Unidas proclamaram extensas listas de Direitos Humanos, mas a imensa maioria da humanidade só tem o direito de ver, ouvir e calar. Que tal começarmos a exercer o jamais direito de sonhar? Que tal delirarmos um pouquinho? Vamos fixar o olhar num ponto além da infâmia para adivinhar outro mundo possível: o ar estará livre de todo o veneno que não vier dos medos humanos e das paixões humanas; nas ruas, os automóveis serão esmagados pelos cães; as pessoas não serão dirigidas pelos automóveis, nem programadas pelo computador, nem compradas pelo supermercado e nem olhadas pelo televisor; o televisor deixará de ser o membro mais importante da família e será tratado como o ferro de passar e a máquina de lavar roupas; as pessoas trabalharão para viver, em vez de viver para trabalhar; será incorporado aos códigos penais o delito da estupidez, cometido por aqueles que vivem para ter e para ganhar, em vez de viver apenas por viver, como canta o pássaro sem saber que canta e como brinca a criança sem saber que brinca; em nenhum país serão presos os jovens que se negarem a prestar o serviço militar, mas irão para a cadeia os que desejarem prestá-lo; os economistas não chamarão nível de vida o nível de consumo, nem chamarão qualidade de vida a quantidade de coisas; os cozinheiros não acreditarão que as lagostas gostem de ser fervidas vivas; os historiadores não acreditarão que os países gostem de ser invadidos; os políticos não acreditarão que os pobres gostem de comer promessas; a solenidade deixará de ser uma virtude; a morte e o dinheiro perderão seus mágicos poderes, e nem por falecimento ou fortuna o canalha será transformado em virtuoso cavalheiro; ninguém será considerado herói nem idiota por fazer o que crê seja justo, em lugar de fazer o quem mais lhe convém.

O mundo já não se encontrará em guerra contra os pobres, mas sim contra a pobreza, e a indústria militar não terá outro caminho senão declarar a falência. A comida não será uma mercadoria, nem a comunicação um negócio, porque a comida e a comunicação são direitos humanos. Ninguém morrerá de fome porque ninguém morrerá de indigestão. As crianças de rua não serão tratadas como se fossem lixo, porque não haverá crianças de rua. Os meninos ricos não serão tratadas como se fossem dinheiro porque não existirão meninos ricos; a educação não será um privilégio de quem possa pagá-la; a polícia não será a maldição de quem não possa comprá-la; a justiça e a liberdade, irmãs siamesas, condenadas a viver separadas, tornarão a unir-se, bem juntinhas, ombro-a-ombro; uma mulher, negra, será presidenta do Brasil e outra mulher, negra, será presidenta dos Estados Unidos da América; uma mulher indígena governará a Guatemala e outra o Perú; na Argentina, as loucas da Praça de Mayo serão o exemplo de saúde mental porque se negaram a esquecer dos tempos da amnésia obrigatória; a Santa Madre Igreja corrigirá os erros das tábuas de Moisés, e o sexto mandamento ordenará que se festeje o corpo; a Igreja também ditará outro mandamento, do qual Deus se esqueceu: “amarás a natureza da qual fazes parte”; serão reflorestados os desertos do mundo e os desertos da alma; os desesperados serão esperados e os perdidos serão encontrados, porque eles são os que se desesperaram de tanto esperar e os que se perderam de tanto procurar; seremos compatriotas de todos os que tenham vontade de justiça e vontade de beleza, tenham nascido onde tenham nascido e tenham vivido onde tenham vivido, sem que importe nem um pouco as fronteiras do mapa ou do tempo; a perfeição continuará sendo um aborrecido privilégio dos deuses; mas, neste mundo confuso e fastidioso, cada noite será vivida como se fosse a última e cada dia como se fosse o primeiro.”

Eduardo galeano ~ Patas arriba La escuela del mundo al revés.
Livre traduação de Sérgio Homrich e do companheiro do PT e da Esquerda Marxista Airton Sudbrack

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