sexta-feira, abril 17, 2009

O Centro da cidade

Desde que seu pai a deixou andar sozinha à noite pela primeira vez, tinha uma visão muito romântica do Centro da cidade. Percebia o silêncio e as luzes dos postes davam às ruas ares de um leve alaranjado mal iluminando o breu. Gostava especialmente de uma praça em que casaizinhos namoravam à moda antiga. Caminhava reparando a calçada, as pessoas nos bares e os recepcionistas nas portas de hotéis. Criava fantasias sobre o que havia no fundo escuro dos portões que passavam despercebidos na agitação do dia. Onde estaria o dono desse carro estacionado sozinho nessa rua onde tudo está fechado? As noites de inverno eram ainda mais especiais. Saia de casa vestindo um sobretudo xadrez para poder caminhar com as mãos no bolso e se sentir numa cidade européia.
A magia nunca passou, mas depois de crescida aqueles caminhos que antes fazia por gosto, viraram rotina obrigatória. Continuava reparando nas calçadas, mas fazia isso inconscientemente. Conhecia cada pedaço de concreto rachado. Logo tornou-se inevitável não dar-se conta de que nem sempre era inverno. Ela agora tinha mais medo de andar a esmo por aí. Havia pedintes e garotos drogados em cada quarteirão. Já não sentia mais vontade de desvendar portões e becos. E as baratas um dia vão dominar a cidade. Todas as noites as bichanas passeiam por aí sem o mínimo de acanhamento. Eu bem que tenho avisado, mas ninguém me dá ouvidos.
O Centro ainda inspirava-lhe contos diários que ela continuava nunca escrevendo. Porém, agora as histórias não escritas passavam do discurso poético ao suspense. Elas estão tomando conta disso aqui e um dia nos expulsarão. Tinha certeza disso.

Um comentário:

Alexandre Perger disse...

O centro da cidade me encanta pela sua sinceridade. É o lugar onde aparecem as aberrações urbanas.