terça-feira, agosto 28, 2007

A Dor

Não havia canto do quarto em que, agachada, fizesse passar aquela horripilante dor. Não havia lado nem posição. Não adiantava gritar, fechar os olhos, acalmar a mente. Não adiantava chorar. Não adiantaria chamar pela mãe, muito menos pelo pai, tão longe estava. Não adiantou urinar, tomar um banho morno. Tentou manter-se serena, usar a força da mente. Tentou gritar à própria cabeça que parasse, que parasse de girar. Mas não adiantava porque quem girava, na verdade, não era ela, era o mundo. Na escuridão a luz era intensa. Lembrou-se do sol, de toda aquela luz arbitrária, que entrava em todos os lugares, em todas as frestas, em todos os quartos. Mas de onde vinha a maldita claridade àquela hora da noite? Abriu os olhos e se deu conta de que, tal como no romance de Saramago, a claridade estava do lado de dentro das pálpebras. Não adiantava gemer, não adiantou bater três vezes com a cabeça na parede. Não queria, não queria por nada nesse mundo. Resistiu até onde pôde. Finalmente levantou-se, foi até a cozinha, ainda mais uma vez olhou receosa as bolinhas brancas. Engoliu o grito de ‘parem o mundo’, engoliu o grito com água e duas bolinhas brancas. Sentiu a droga descendo por sua garganta; veio a ânsia, o arrependimento imediato, depois o conformismo. Enfim, rendera-se. Vil animal feito de fraquezas; tão pequeno, tão medíocre, não pôde com suas próprias dores... Parada em frente à pia da cozinha começava já a gozar do alívio. Deitou-se, ainda pôde perceber o mundo que desacelerava. Adormeceu.

sábado, agosto 18, 2007

"...E, libertos de todas as restrições, realizaremos na arte o Universo. A vida será, enfim, vivida na sua profunda realidade estética. O próprio Amor é uma função da arte, porque realiza a unidade integral do Todo infinito pela magia das formas do ser amado. No universalismo da arte estão a sua força e a sua eternidade. Para sermos universais façamos de todas as nossas sensações expressões estéticas, que nos levem a à ansiada unidade cósmica. Que a arte seja fiel a si mesma, renuncie ao particular e faça cessar por instantes a dolorosa tragédia do espírito humano desvairado do grande exílio da separação do Todo, e nos transporte pelos sentimentos vagos das formas, das cores, dos sons, dos tatos e dos sabores à nossa gloriosa fusão no Universo."

Graça Aranha - 1922
Aqueles versinhos tão doces e bobinhos foram perdidos há muito tempo, dentro de um velho caderno. Procurou-os umas duas vezes sem muito entusiasmo e não os achou. Depois esqueceu, aposentou o velho caderninho e lá ficaram os versinhos, dormindo, como uma bela adormecida um pouco feia.
Coitados dos versinhos! É certo que não eram versos da mais esplêndida beleza, nem foram escritos pelo mais esplêndido poeta. Eram versos bem bobinhos, bem melosos, bem clichês... Eram versinhos desses que se escreve em cartinhas apaixonadas na quinta série, ou na agenda - em códigos de estrelas e bolinhas -, mas eram tão puros, tão sinceros. Merecem sim um pouquinho de piedade por estarem perdidos, pois naquele momento, naqueles anos, naquela época, foram sentidos com toda a capacidade de um coraçãzinho partido.
Os versinhos escondidos, tão secretos, tão denunciadores dos mais íntimos sentimentos, perdidos agora, ainda, talvez para sempre, nas páginas amareladas de um caderno velho, ocultos, como deveriam mesmo ser.

terça-feira, agosto 14, 2007

É proibido proibir

"A mãe da virgem diz que não.
E o anúncio da televisão.
E estava escrito no portão.
E o maestro ergueu o dedo.
E além da porta há o porteiro, sim.
Eu digo não.
Eu digo não ao não.
Eu digo.
É proibido proibir.
É proibido proibir.
É proibido proibir.
É proibido proibir.

Me dê um beijo, meu amor
Eles estão nos esperando
Os automóveis ardem em chamas
Derrubar as prateleiras
As estantes, as estátuas
As vidraças, louças, livros, sim
Eu digo sim
Eu digo não ao não
Eu digo
É proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir."


Caetano Veloso

In Light To Enlight



Jankrishna Dames

14 de Agosto

Vontade de ir embora, de pôr a mochila nas costas e enveredar-se por qualquer estrada alucinante, pedir carona para onde Deus quiser levar e, em uma ausência qualquer de Deus, ir para onde o vento ou as próprias pernas a levarem.
Saudades do sol e daquele céu azul que contemplava deitada na cama antiga da casa antiga, das quais nem se lembra mais. Saudades daquelas palmeiras altas que podia avistar deitada lá, dessas sim se lembra com nitidez. Saudades das curas vespertinas das angústias diárias.
Vontade de reviver aquele tempo que só viveu nas loucas tardes imaginárias, fruto de pouquíssima ociosidade na infância. Falta do abraço que não teve e do cheirinho de pão que nos finais de tarde não havia.
Desejo de não ter ao que desejar se prender, para que venham sempre a surpresa, os tombos e a satisfação risonha de mais uma viagem irresponsável.
Saudades do vento da estrada esvoaçando os cabelos que nunca saíram de onde sempre estiveram: em cima da cabeça.

terça-feira, agosto 07, 2007

Martin Riwnyj

Lágrimas ocultas

"Se me ponho a cismar em outras eras
em que ri e cantei, em que era q’rida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida…

E a minha triste boca dolorida
Que dantes tinha o rir das Primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!

E fico, pensativa, olhando o vago…
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim…

E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!"

(Florbela Espanca)

segunda-feira, agosto 06, 2007

Para uma menina com uma flor

"Porque você é uma menina com uma flor e tem uma voz que não sai, eu lhe prometo amor eterno, salvo se você bater pino, que aliás você não vai nunca porque você acorda tarde, tem um ar recuado e gosta de brigadeiro: quero dizer, o doce feito com leite condensado.


E porque você é uma menina com uma flor e chorou na estação de Roma porque nossas malas seguiram sozinhas para Paris e você ficou morrendo de pena delas partindo assim no meio de todas aquelas malas estrangeiras. E porque você quando sonha que eu estou passando você para trás, transfere sua d.d.c. para o meu cotidiano e implica comigo o dia inteiro como se eu tivesse culpa de você ser assim tão subliminar. E porque quando você começou a gostar de mim procurava saber por todos os modos com que camisa esporte eu ia sair para fazer mimetismo de amor, se vestindo parecido. E porque você tem um rosto que está sempre num nicho, mesmo quando põe o cabelo para cima, como uma santa moderna, e anda lento, a fala em 33 rotações mas sem ficar chata. E porque você é uma menina com uma flor, eu lhe predigo muitos anos de felicidade, pelo menos até eu ficar velho: mas só quando eu der aquela paradinha marota para olhar para trás, aí você pode se mandar, eu compreendo.


E porque você é uma menina com uma flor e tem um andar de pajem medieval; e porque você quando canta nem um mosquito ouve a sua voz, e você desafina lindo e logo conserta, e às vezes acorda no meio da noite e fica cantando feito uma maluca. E porque você tem um ursinho chamado Nounouse e fala mal de mim para ele, e ele escuta mas não concorda porque é muito meu chapa, e quando você se sente perdida e sozinha no mundo você se deita agarrada com ele e chora feito uma boba fazendo um bico deste tamanho. E porque você é uma menina que não pisca nunca e seus olhos foram feitos na primeira noite da Criação, e você é capaz de ficar me olhando horas. E porque você é uma menina que tem medo de ver a Cara– na-Vidraça, e quando eu olho você muito tempo você vai ficando nervosa até eu dizer que estou brincando. E porque você é uma menina com uma flor e cativou meu coração e adora purê de batata, eu lhe peço que me sagre seu Constante e Fiel Cavalheiro.


E sendo você uma menina com uma flor, eu lhe peço também que nunca mais me deixe sozinho, como nesse último mês em Paris; fica tudo uma rua silenciosa e escura que não vai dar em lugar nenhum; os móveis ficam parados me olhando com pena; é um vazio tão grande que as outras mulheres nem ousam me amar porque dariam tudo para ter um poeta penando assim por elas, a mão no queixo, a perna cruzada triste e aquele olhar que não vê. E porque você é a única menina com uma flor que eu conheço, eu escrevi uma canção tão bonita para você, “Minha namorada”, a fim de que, quando eu morrer, você se por acaso não morrer também, fique deitadinha abraçada com Nounouse, cantando sem voz aquele pedaço em que eu digo que você tem de ser a estrela derradeira, minha amiga e companheira, no infinito de nós dois.


E já que você é uma menina com uma flor e eu estou vendo você subir agora – tão purinha entre as marias-sem-vergonha – a ladeira que traz ao nosso chalé, aqui nestas montanhas recortadas pela mão presciente de Guignard; e o meu coração, como quando você me disse que me amava, põe-se a bater cada vez mais depressa. E porque eu me levanto para recolher você no meu abraço, e o mato à nossa volta se faz murmuroso e se enche de vaga-lumes enquanto a noite desce com seus segredos, suas mortes, seus espantos – eu sei, ah, eu sei que o meu amor por você é feito de todos os amores que eu já tive, e você é a filha dileta de todas as mulheres que eu amei; e que todas as mulheres que eu amei, como tristes estátuas ao longo da aléia de um jardim noturno, foram passando você de mão em mão, de mão em mão até mim, cuspindo no seu rosto e enfeitando a sua fronte de grinaldas; foram passando você até mim entre cantos, súplicas e vociferações – porque você é linda, porque você é meiga e sobretudo porque você é uma menina com uma flor."


(Vinicius de Moraes)

O Estratagema do Amor

"- A mais elevada de todas as loucuras - dizia ela -, é envergonharmo-nos das inclinações que recebemos da natureza; e fazer pouco dum qualquer indivíduo que tem gostos singulares, é absolutamente tão bárbaro como o seria mofar dum homem ou duma mulher saído zarolho ou coxo do seio da mãe, mas insinuar estes princípios razoáveis a néscios é empreender parar o curso dos astros. Existe uma espécie de prazer para o orgulho em rir dos efeitos que não se tem, e estes gozos são tão doces ao homem e particularmente aos imbecis, que é muito raro vê-los renunciar-lhes… Isso provoca, aliás, maldades, frios ditos de espírito, fracos trocadilhos, e para a sociedade, ou seja para uma colecção de seres que o tédio junta e que a estupidez modifica, é tão doce falar duas ou três horas sem nada dizer, tão delicioso brilhar à custa dos outros e anunciar estigmatizando-o um vício que se está muito longe de ter… é uma espécie de elogio que se pronuncia tacticamente sobre si mesmo; por este preço consentem até em se unir aos outros, em fazer cabala para esmagar o indivíduo cujo grande erro é o de não pensar como o comum dos mortais, e retiram-se para casa inchados do espírito que mostraram, quando só provaram radicalmente por uma tal conduta pedantismo e tolice.
Assim pensava a Menina de Villebranche..."


(Marquês de Sade )

domingo, agosto 05, 2007

agosto/2

Lembra do que eu disse sobre os meus meses de agosto?
Mal começou e já começou.

Rizoma

"...faça rizoma e não raiz, nunca plante! Não semeie, pique! Não seja nem uno nem múltiplo, seja multiplicidade! Faça a linha e nunca o ponto! A velocidade transforma o ponto em linha! Seja rápido, mesmo parado! Linha de chance, jogo de cintura, linha de fuga. Nunca suscite um General em você! Nunca idéias justas, justo uma idéia (Godard). Tenha idéias curtas. Faça mapas, nunca fotos nem desenhos. Seja a pantera cor-de-rosa e que vossos amores sejam como a vespa e a orquídea, o gato e o babuíno..."